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S. Ganeff

Quanto tempo demoramos para esquecer?

Marajó? Palestina? Os curdos? Lembra desses, leitor?

S. Ganeff

Escritora, é a mais jovem finalista do Prêmio Jabuti, com "As Vozes da Minha Cabeça" (ed. Labrador)

Meu caro leitor, tenho uma pergunta: quanto tempo demoramos para esquecer? É evidente que quando se esquece não se lembra mais de quando lembrou da última vez; mas quando foi a última vez? Quanto tempo leva para o tempo levar as nossas memórias? Quando é que… ops! Esqueci o que iria dizer. Desculpa, leitor. Isso acontece.

A guerra da Síria, por exemplo, teve o início de seu conflito em 2011. Vou repetir, 2011. Você lembrava que fazia tanto tempo assim, leitor? É esperado que não se lembre do que 2011 trouxe ao mundo (se não nos lembramos, nem mesmo, da última postagem que vimos no feed). Mas é esperado que se lembre de hoje.

Então eu lhe pergunto, a guerra da Síria acontece hoje? Você lembra se a guerra da Síria continua hoje, agora mesmo? Leitor, eu lhe digo, neste exato momento em que conversamos, que a Síria permanece em ruínas, pior do que estava em 2011. Quando foi que nos esquecemos? Quando foi que a notícia ficou velha demais para ser sequer mencionada? Afinal, eu duvido que você tenha ouvido falar na guerra da Síria em muito tempo.

Sírios fazem protesto contra Recept Erdogan, presidente de Turquia - Aaref Watad/AFP

Me pergunto o que aconteceu com os civis da Ucrânia agora que o mundo esqueceu deles. Será que eles ainda sangram? Será que as pessoas permanecem sem suas casas? Será que o presidente da Ucrânia, em pessoa, continua lutando ativamente no conflito ou será que ele também, eventualmente, esqueceu que hoje ainda era dia de luta? Eu tinha uma amiga da Ucrânia… qual era o nome dela mesmo…? Que loucura… me esqueci…

A gente nem sequer lembra do vírus que parou o mundo. "Nossa, parece que foi em outra vida…". Quando foi que nos acostumamos tanto a ponto de esquecer das pessoas que foram morar nas ruas por conta da Covid? Quando foi que começamos a desviar, com tanta naturalidade, nosso trajeto em linha reta na calçada ao encontrar pessoas deitadas no papelão?

Quando é que as tragédias avassaladoras se tornam cotidiano? Quando é que o nosso coração para de se sensibilizar e simplesmente esquece que um dia sentiu empatia por um estranho em situação vulnerável?

Quando, leitor, esquecemos de sentir?

As crianças cruelmente impedidas de uma vida digna na Síria se tornaram adultos e é tão rotina que, hoje, anunciar o conflito sírio seria como anunciar que o Sol nasceu. Acontece todo dia… Uma identidade, um povo foi dizimado e já virou cotidiano, só se fala da Ucrânia quando Putin lembra das cinco famílias que tiveram suas casas explodidas pela manhã. E os moradores de rua vítimas da Covid… esses foram lembrados apenas com um tal de artigo de opinião que fala sobre o tempo do tempo.

Marajó? Palestina? Os curdos? Lembra desses, leitor?

Por isso, Rio Grande do Sul, eu aconselho a aproveitarem o tempo para pedir o máximo de ajuda que conseguirem. Eu recomendo pedirem socorro o mais alto que conseguem. Indico que façam o tempo parar. Um dia, o novo vira velho e uma tragédia se torna mais um casaco olvidado dentro do armário.

Que o Brasil inteiro nunca se esqueça de vocês. Como nunca deveria ter se esquecido de ninguém.

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