Fernanda Torres

Atriz e roteirista, autora de “Fim” e “A Glória e Seu Cortejo de Horrores”.

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Fernanda Torres

Preocupa a obrigação do profissional de virar garoto-propaganda de si

Voltamos à exploração da intimidade das estrelas da banheira do Cid Moreira e dos paparazzi da revista Caras

Depois da temporada paulista, Bruno Mazzeo e Lucio Mauro Filho estrearam a peça "Gostava Mais dos Pais" no Rio de Janeiro. Fui assisti-los.

Sou mais velha do que a dupla, mas, depois dos 50, todo mundo tem a mesma idade. Como eu, ambos foram paridos na coxia e tiveram a sorte de terem nascido no século passado. Caso estivessem em começo de carreira neste momento aguerrido da humanidade, talvez tivessem até desistido do palco, atormentados pela pecha de "nepo babies", neologismo azedo tão em voga na atualidade.

Sobre fundo branco, há uma foto duplicada e espelhada do rosto de uma mesma mulher jovem, de perfil. Do lado esquerdo, o perfil da moça ANTES, com seu nariz de nascença; do lado direito, o perfil da moça DEPOIS de ter feito rinomodelação, ficando com o nariz menor e empinado. Sobreposto a cada pefil, há textos escritos em preto, evocando comentários de rede social.  No perfil ANTES: - Adoro nariz adunco!! - Nariz lindo, forte! No perfil DEPOIS: - Mega empinadinho, amooo (com emoji coração) - Micro nariz? (com emoji carinha triste)
Ilustração de Marta Mello para coluna de Fernanda Torres - Marta Mello/Folhapress

A peça trata da comparação com Chico Anysio e Lúcio Mauro pai, enfrentada pelos dois durante toda a juventude. E do desafio da maioridade de vingarem com as novas gerações de espectadores, que medem o talento de um ator pelo número de seguidores nas redes sociais.

A coisa é séria. Os streamings ainda escalam o elenco com mais de 45 anos pela qualidade interpretativa, mas os novinhos precisam passar do milhão de seguidores para sequer serem cogitados. O ator vale pelas razões de sempre, mas também pela contribuição que trará para a divulgação de uma série ou filme no oceano virtual.

A primeira vez que me deparei com essa nova realidade foi numa campanha de comercial, quase duas décadas atrás. Por dois anos, um colega e eu nos transformamos em garotos-propaganda de uma empresa sólida. No terceiro ano de renovação, contrataram outra agência e o diretor que assumiu marcou um jantar conosco, para esclarecer os novos rumos do reclame. Fomos.

Assim que se sentou à mesa, o "über" publicitário mandou descer um vinho barato. Falou assim mesmo, "pede, aí, um vinho barato", para deixar claro o menosprezo que sentia por dois famosos infames, que perpetuavam a mentira no sacrossanto universo da propaganda.

Didático, nos explicou que só a verdade o interessava. Uma verdade que começava a emergir das redes sociais, de baixo, dizia ele, da vontade orgânica do público. Achei que iam tocar a "Internacional" no piano bar.

E deu de exemplo Mallu Magalhães, fenômeno de visualizações da época, revelada de forma espontânea na internet e apontada como o futuro da MPB. Eu não tenho nada contra a Mallu Magalhães, mas, sei lá por que cargas d’água, o homem nos tratou como se fôssemos o avesso dela.

O discurso do visionário, mistura de McLuhan, Marcuse e Marx, foi de mal a pior, até que reagi, dizendo que havia entendido que éramos dois abacaxis podres, mas que, por alguma razão, não era possível, para ele, nos demitir. Da minha parte, eu respeitava a pureza do conceito "publicidade verdade", estaria disposta a assimilá-lo, mas meu limite eram os meus filhos. Eu jamais os exporia.

Mallu Magalhães, justiça seja feita, emergiu pela música, mas eu já suspeitava de que a nova commodity, a soja virtual a qual o publicitário purista chamava de verdade, corria o risco de ser minha vida pessoal. Num momento de necessidade, já vendi até caipirinha em pó, mas minha casa, filhos sobretudo, nunca.

A exploração da intimidade das estrelas teve seu ápice analógico com a banheira do Cid Moreira e os paparazzi da revista Caras perseguindo atrizes grávidas pelo Leblon. O horror de chamar ator de celebridade, como se fosse a mesma profissão, se é que ser célebre pode ser chamado de profissão, virou regra na imprensa rosa, antes de ser aberração na internet.

O leitor pode argumentar que são os ossos do ofício, da popularidade do ator, mas o que dizer de um médico obrigado a alimentar o Tamagotchi midiático para sobreviver?

A Doctor Filmes, por exemplo, grava cirurgias em tempo real e tem como slogan: "crie autoridade através do seu Instagram", prometendo ao clínico ser "cirurgicamente eficiente em suas mídias sociais". No caso de um cirurgião plástico, uma dermatologista, eu até perdoaria a autopromoção, mas um proctologista, um cardiologista, um cirurgião de pulmão?!

Imagine você de touca, alucinado de propofol, avental aberto para trás, dividido ao meio por um bisturi, com uma equipe de filmagem presente, para eternizar a sua frágil condição humana nos "reels" do doutor marketing que te opera. Isso fora o risco aumentado de infecção de uma sala de cirurgia superpovoada.

Nem de graça. Meu limite eram os meus filhos, mas incluo os meus órgãos vitais.

Não sou tão retrógrada a ponto de achar que tudo é condenável na comunicação virtual. O doutor Drauzio é referência de boa informação médica. Os bots podem disparar mensagens tanto para fortalecer a cobertura vacinal do país, quanto para defender a cura da Covid pela ivermectina.

Preocupa, no entanto, a obrigação do profissional, não importa a área, de virar garoto-propaganda de si mesmo. Nas artes cênicas, a prática pode levar à exposição barata; na medicina, à falta de decoro e, na política, ao populismo.

É preciso domar o Alien.

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