Nomes autorais e regravações: Trilhas de novelas mudam na era do streaming

A era de ouro das trilhas sonoras de novela foi marcada por artistas que sonhavam em emplacar um hit e até mesmo produziam músicas exclusivamente para o folhetim, e pelo público que esgotava os vinis nas prateleiras das lojas. No auge, as gravadoras enviavam os novos sucessos para que a curadoria das telenovelas decidisse o que entrava, livre de pagamento de direitos autorais.

Hoje, há poucas gravadoras no mercado e o streaming se tornou a plataforma de disposição das músicas. Nesta era, coisas até então incomuns têm ocorrido. Um bom exemplo são artistas autorais como Almério e Martins, presentes na trilha da novela "Renascer", das 21 horas. Já no folhetim das 18 horas, "No Rancho Fundo", das 17 faixas que compõem a trilha, dez são de artistas nordestinos, muitos dos quais autorais.

Especialistas que acompanham a cena musical notam que, mesmo com a presença desses artistas, as trilhas ainda apostam na regravação de clássicos, em vez de trazer produções novas. O jornalista José Teles, que cobriu música por mais de 30 anos em Pernambuco, explica que por muitos anos, as gravadoras produziam música por encomenda para as trilhas de novelas.

Era comum o pagamento de jabá, [quantia em dinheiro] para que a música de uma determinada gravadora entrasse na trilha. Além disso, alguns artistas ofereciam as suas músicas livre do pagamento de direitos autorais, só para virar sucesso. José Teles, jornalista especializado em música

Para Teles, a composição da trilha de "No Rancho Fundo" chama atenção por trazer nomes autorais como Flávio José, Natacha Falcão, Juliana Linhares, levando em conta que no Sudeste, ainda é comum "as pessoas conhecerem artistas nordestinos autorais, [só] quando nomes como Elba Ramalho ou Fagner gravam suas canções", observa.

Estar na trilha sonora de um folhetim global das 21 horas, porém, não tem mais o mesmo impacto que tinha há três décadas atrás. Gustavo Alonso, doutor em História, professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e autor do livro 'Cowboys do Asfalto: Música Sertaneja e Modernização Brasileira', acredita que as novelas não são mais a mídia que lança hits.

De uns 15 anos para cá a Globo desistiu completamente de fazer de sua trilha sonora uma plataforma de lançamentos. Eram sucessos inéditos que ouvíamos nas novelas... não é mais assim... já há bastante tempo é só repeteco. Gustavo Alonso, professor da UFPE e autor

O professor, que analisou a trilha de "No Rancho Fundo", observa que muitas das canções são regravações. "Nessa trilha, há uma repetição do que a Globo vem fazendo. De todas as músicas da trilha, apenas três me parecem ser dos últimos anos. São elas 'Melaço', com Lucy Alves, que é de 2024, e 'Piloto', de João Gomes, que é de 2023. Vento', cantada por Gil e Feyjão, também é nova", analisa.

Faixas marcantes

O uso das trilhas sonoras de novela começou com a gravadora Rozenblit, empresa fundada em Recife com filial no Rio de Janeiro, que tinha João Araújo como funcionário. Ao fundar a gravadora Som Livre, João Araújo levou a ideia das trilhas sonoras para as novelas globais. "Houve um tempo em que a Som Livre, que pertencia à Rede Globo, detinha 40% do mercado fonográfico e emplacava diversas trilhas nas próprias novelas globais", relembra Teles.

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Algumas canções só deslancharam após serem veiculadas em trilhas de novela. É o caso da música "Pavão Misterioso", de Ednardo, lançada em 1974 e ignorada pelo público, mas que ao tornar-se a música de abertura da novela "Saramandaia", dois anos mais tarde, em 1976, fez sucesso. Algumas trilhas foram compostas exclusivamente para os folhetins e outras eram frutos das composições dos especialistas em trilhas.

O compositor pernambucano Dudu Falcão, radicado há anos no Rio de Janeiro, é um desses especialistas. Autor de mais de 60 trilhas de novelas, muitas das quais produzidas em parceria com o cantor Lenine, ele conta a Splash que a sua história com as telenovelas começou ao emplacar três canções produzidas em parceria com Danilo Caymmi para a série "Riacho Doce".

As canções são: "O Bem e o Mal", interpretada pelo próprio Danilo, "O Que É o Amor", interpretada pela saudosa Selma Reis, e "O Sonho se Perdeu", interpretada por Milton Guedes. Para Falcão, o glamour das capas bem elaboradas, dos encartes com as letras, a arte gráfica, e todos os créditos para músicos, autores e produtores musicais das trilhas de novela se perdeu na era do streaming.

O compositor também afirma que, agora, o pagamento dos direitos autorais ficou comprometido e há pouca transparência por parte das plataformas. "Para cada 100% de uma execução no streaming, as gravadoras ficam com 58%, as plataformas com 30%, as editoras com 9%, e o autor recebe apenas 3%, isso quando recebe. É um absurdo. O ambiente digital ainda é muito nublado", reclama.

O compositor Dudu Falcão
O compositor Dudu Falcão Imagem: Thomas Baccaro/Divulgação

Dudu também enfatiza falhas no processo de pagamento de direitos autorais em casos de regravações, algo que tem ganhado bastante espaço no mercado do streaming. Ele explica que atualmente "a montagem vem dominando o mercado de streaming, utilizando obras conhecidas." Falcão relata que muitas das obras originais "são desconfiguradas sem autorização ou conhecimento dos autores originais."

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Em outros casos, prossegue o compositor, há intérpretes que são surpreendidos com montagens que utilizam vozes das gravações originais", complementa. "O ambiente digital precisa ser regulado com urgência, o descaso com o direito já foi longe demais", arremata.

O historiador Gustavo Alonso acredita que, mesmo com a redução da audiência das telenovelas por causa das séries e outros conteúdos do streaming, ainda haveria espaço para trazer músicas atuais e formar o gosto do público. Nos anos 70 e 80, décadas que foram marcos na história das trilhas de novela, "a inovação era justamente abordar as músicas contemporâneas". Porém, hoje, analisa Alonso, "há uma romantização grande do passado que emperra o presente", observa.

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