Jamil Chade

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Opinião

O dia em que aviões de guerra despejaram poesia


Passo meus dias lendo informes militares, de agências humanitárias e de grupos de direitos humanos denunciando o uso indiscriminado de bombas sobre populações indefesas. Recebo, dia após dia, tabelas com números de mortos, feridos e amputados. Mesmo quando os conflitos parecem desaparecer das páginas dos jornais, lhes garanto: as mortes continuam ocorrendo.

Normalizamos os crimes, esquecemos da Ucrânia, nem sabemos onde fica El Fasher. Enquanto escrevo esse texto, recebo mais um comunicado em meu email: quatro escolas foram atacadas em Gaza nos últimos quatro dias. Dezenas de mortos. Temos o direito de cruelmente virar a página?

Acho que leio cada um desses informes na esperança de me deparar com a repetição da história. Não a do padrão dos crimes. Mas um episódio específico que me marcou: quando soube do dia em que aviões de guerra despejaram poesia.

Inspirado pelo seu grande amor, o poeta francês Paul Éluard escreveu o que acabaria sendo o hino da resistência contra a Alemanha Nazista. "Liberté".

Nos meus cadernos de escola
Nesta carteira nas árvores
Nas areias e na neve
Escrevo teu nome

O texto não era para ser uma convocação à luta. O próprio autor explicou, anos depois, que quando começou a rabiscar as palavras, tratava-se de uma poema para seu grande amor, Nusch, uma artista dadaísta. Sequer o título da poesia era Liberdade. Em sua versão original, o autor havia colocado: "um só pensamento".

Mas, enquanto escrevia, sentiu que estava também falando de seu desejo pelo fim da ocupação, pela liberdade que ganhava um contorno equivalente à paixão que sentia pela amada artista. O texto, assim, ganhou um novo destino.

Em abril de 1942, as estrofes foram copiadas por um grupo de resistentes e o poema passou a circular de forma clandestina. Cruzou a fronteira entre a França ocupada e os territórios ainda livres. Pouco tempo depois, o texto conseguiu chegar até a Inglaterra e, de lá, os aviões da Royal Air Force despejaram os versos em voos pela áreas da França onde sabiam que poderia existir núcleos da resistência contra o nazismo.

Paul Éluard havia sido convocado para lutar tanto na Primeira quanto na Segunda Guerra. Havia se transformado num pacifista fervoroso, diante do horror que havia conhecido. A história reservaria um destino inesperado às suas palavras:

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Um bombardeio de poesia.

Em suas estrofes, uma repetição martelada sem fim, como uma obsessão, do desejo da liberdade. E de amor.

E ao poder de uma palavra
Recomeço minha vida
Nasci pra te conhecer
E te chamar

Liberdade

Nesta semana, somos todos um pouco resistência, diante dos resultados das urnas na França.

Temos a obrigação de ser esperança.

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Saudações democráticas

Jamil

Obs: No Brasil, o poema ganhou uma tradução de luxo, de Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade

Liberdade

Nos meus cadernos de escola
Nesta carteira nas árvores
Nas areias e na neve
Escrevo teu nome

Em toda página lida
Em toda página branca
Pedra sangue papel cinza
Escrevo teu nome

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Nas imagens redouradas
Na armadura dos guerreiros
E na coroa dos reis
Escrevo teu nome

Nas jungles e no deserto
Nos ninhos e nas giestas
No céu da minha infância
Escrevo teu nome

Nas maravilhas das noites
No pão branco de cada dia
Nas estações enlaçadas
Escrevo teu nome

Nos meus farrapos de azul
No tanque sol que mofou
No lago lua vivendo
Escrevo teu nome

Nas campinas do horizonte
Nas asas dos passarinhos
E no moinho das sombras
Escrevo teu nome

Em cada sopro de aurora
Na água do mar nos navios
Na serrania demente
Escrevo teu nome

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Até na espuma das nuvens
No suor das tempestades
Na chuva insípida e espessa
Escrevo teu nome

Nas formas resplandecentes
Nos sinos das sete cores
E na física verdade
Escrevo teu nome

Nas veredas acordadas
E nos caminhos abertos
Nas praças que regurgitam
Escrevo teu nome

Na lâmpada que se acende
Na lâmpada que se apaga
Em minhas casas reunidas
Escrevo teu nome

No fruto partido em dois
de meu espelho e meu quarto
Na cama concha vazia
Escrevo teu nome

Em meu cão guloso e meigo
Em suas orelhas fitas
Em sua pata canhestra
Escrevo teu nome

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No trampolim desta porta
Nos objetos familiares
Na língua do fogo puro
Escrevo teu nome

Em toda carne possuída
Na fronte de meus amigos
Em cada mão que se estende
Escrevo teu nome

Na vidraça das surpresas
Nos lábios que estão atentos
Bem acima do silêncio
Escrevo teu nome

Em meus refúgios destruídos
Em meus faróis desabados
Nas paredes do meu tédio
Escrevo teu nome

Na ausência sem mais desejos
Na solidão despojada
E nas escadas da morte
Escrevo teu nome

Na saúde recobrada
No perigo dissipado
Na esperança sem memórias
Escrevo teu nome

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E ao poder de uma palavra
Recomeço minha vida
Nasci pra te conhecer
E te chamar

Liberdade

Em francês

Liberté

Sur mes cahiers d'écolier
Sur mon pupitre et les arbres
Sur le sable de neige
J'écris ton nom

Sur les pages lues
Sur toutes les pages blanches
Pierre sang papier ou cendre
J'écris ton nom

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Sur les images dorées
Sur les armes des guerriers
Sur la couronne des rois
J'écris ton nom

Sur la jungle et le désert
Sur les nids sur les genêts
Sur l'écho de mon enfance
J'écris ton nom

Sur les merveilles des nuits
Sur le pain blanc des journées
Sur les saisons fiancées
J'écris ton nom

Sur tous mes chiffons d'azur
Sur l'étang soleil moisi
Sur le lac lune vivante
J'écris ton nom

Sur les champs sur l'horizon
Sur les ailes des oiseaux
Et sur le moulin des ombres
J'écris ton nom

Sur chaque bouffée d'aurore
Sur la mer sur les bateaux
Sur la montagne démente
J'écris ton nom

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Sur la mousse des nuages
Sur les sueurs de l'orage
Sur la pluie épaisse et fade
J'écris ton nom

Sur les formes scintillantes
Sur les cloches des couleurs
Sur la vérité physique
J'écris ton nom

Sur les sentiers éveillés
Sur les routes déployées
Sur les places qui débordent
J'écris ton nom

Sur la lampe qui s'allume
Sur la lampe qui s'éteint
Sur mes maisons réunies
J'écris ton nom

Sur le fruit coupé en deux
Du miroir et de ma chambre
Sur mon lit coquille vide
J'écris ton nom

Sur mon chien gourmand et tendre
Sur ses oreilles dressées
Sur sa patte maladroite
J'écris ton nom

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Sur le tremplin de ma porte
Sur les objets familiers
Sur le flot du feu béni
J'écris ton nom

Sur toute chair accordée
Sur le front de mes amis
Sur chaque main qui se tend
J'écris ton nom

Sur la vitre des surprises
Sur les lèvres attendries
Bien au-dessus du silence
J'écris ton nom

Sur mes refuges détruits
Sur mes phares écroulés
Sur les murs de mon ennui
J'écris ton nom

Sur l'absence sans désir
Sur la solitude nue
Sur les marches de la mort
J'écris ton nom

Sur la santé revenue
Sur le risque disparu
Sur l'espoir sans souvenir
J'écris ton nom

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Et par le pouvoir d'un mot
Je recommence ma vie
Je suis né pour te connaître
Pour te nommer

Liberté

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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